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Artigo: Juízes do trabalho (supostamente) liberais: leiam o Financial Times

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Nos últimos anos surgiu um novo tipo de magistrado na Justiça do Trabalho: aquele que não gosta de leis trabalhistas. Considerando-se “moderno e liberal”, esse juiz acredita que quando o legislador concede e o judiciário reconhece muitos direitos aos trabalhadores, lhes estão fazendo um grande mal. Para esse tipo de julgador, direitos trabalhistas devem ser restritos tanto quanto possível, e limitada ao máximo a ação sindical, pois isso “geraria mais empregos” e “atrairia investimentos estrangeiros”. Desnecessário dizer que esses juízes são grandes entusiastas das “reformas trabalhistas”, cujos dispositivos aplicam sem questionamentos quanto às suas flagrantes inconstitucionalidades e absurdas incongruências.

Diante dos casos de evidente relação de emprego entre trabalhadores recrutados por aplicativos e as plataformas de transporte (reconhecida com frequência cada vez maior em países avançados, EUA e Inglaterra incluídos), esse juiz “moderno e liberal” descarta de plano a existência de vínculo, sem maiores aprofundamentos, ao pífio argumento de que os contratados “não estão sujeitos a controle de jornada e trabalham quando querem”.

Mas esse juiz não explica, em processos que tais, por que outros trabalhadores igualmente dispensados de controle de horário (cargos em comissão, trabalho externo, trabalho domiciliar), inobstante esse fato, são considerados empregados. Não explica por que trabalhadores intermitentes, que também trabalham quando querem, são, apesar disso, considerados empregados. Não explica por que razão deixam de aplicar o parágrafo único do art. 6º. da CLT (os meios telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão se equiparam, para fins de subordinação jurídica, aos meios pessoais e diretos de comando, controle e supervisão do trabalho alheio). E, acima de tudo, não explica em suas decisões supostamente liberais como pode existir um trabalhador “autônomo” que não tem sequer o poder de fixar o valor do seu próprio trabalho – pedra fundamental da liberdade de contrato.

Não raro, em decisões que envolvem as novas formas de trabalho da “gig economy”, esse juiz “moderno e liberal” utiliza em suas decisões – e também em suas palestras -, argumentos metajurídicos, aproveitando para acoimar a legislação trabalhista brasileira de “anacrônica” e a reputando incapaz de regular o que seriam as novas realidades da “revolução digital” (a despeito do citado parágrafo único do art. 6º., introduzido na CLT em 2011), como se essa houvesse simplesmente feito desaparecer a lógica de compra da força de trabalho que (legitimamente) move o mundo capitalista (incluídas ai, é claro, as gigantescas e tentaculares “big techs”).

Lembrei-me desse arquetípico Juiz do Trabalho “moderno e liberal” ao ler o impactante editorial do Financial Times, publicado na edição do dia 11 de agosto passado, sobre a decisão da Justiça da Califórnia que mandou as empresas Uber e Lyft registrarem como empregados todos os motoristas de seus aplicativos. Em opinião assinada pelo seu Conselho Editorial, o venerando jornalão londrino, fundado em 1888 e atualmente contando com mais de um milhão de assinantes pagadores, considera a decisão do Judiciário californiano “correta”. Afirmam os editorialistas, também, o fato óbvio e ululante de que os motoristas de aplicativos são trabalhadores e não microempresários.

Para quem não o conhece, basta dizer que o Financial Times é a bíblia do capitalismo, o alcorão dos mercados financeiros, o livro sagrado dos liberais. O título do editorial, aliás, já diz tudo: “Uber e Lyft deveriam tratar os motoristas como empregados”. Reproduzo, em tradução ao português, para que todos possam ler com seus próprios olhos (a versão original em inglês pode ser lida aqui):

“A Califórnia, o lar espiritual da gig economy, deu um duro golpe nos modelos de negócios das empresas de plataformas. A suprema corte do estado decidiu na segunda-feira que Uber e Lyft, duas das maiores empresas de compartilhamento de carros, têm que tratar seus motoristas como empregados e não como trabalhadores autônomos. Embora as empresas possam recorrer, se a decisão se mantiver, elas terão agora que pagar o auxílio-doença, seguro-desemprego e pagamento de férias.

O julgamento é o correto: a gig-economy está há muito tempo em uma área legal cinzenta, permitindo que as empresas evitem suas obrigações com os trabalhadores. As empresas argumentam que os motoristas trabalham de fato por conta própria e que as empresas operam como um facilitador algorítmico para lhes entregar clientes.
Os críticos dizem, entretanto, que as altas avaliações dessas empresas deficitárias do Vale do Silício devem tanto à exploração quanto à inovação. Uber e Lyft são efetivamente serviços comuns de reserva de transporte individual que encontraram uma maneira de contornar as proteções normais desfrutadas pelos trabalhadores. Os motoristas podem definir seus próprios horários, mas a partir do momento em que ligam o aplicativo, eles devem fazer o que as empresas dizem e só podem aceitar os clientes que lhes são designados. De acordo com este argumento, aqueles que trabalham em tempo integral nas plataformas devem ser considerados trabalhadores como qualquer outro.

O julgamento de segunda-feira significa que a lei da Califórnia está ao lado dos críticos. A aprovação do Projeto de Lei número cinco (AB-5) pela legislatura do estado da Califórnia no ano passado teve como objetivo tornar mais difícil para as empresas provar que os trabalhadores eram trabalhadores autônomos. Para serem considerados como autônomos, os trabalhadores têm que estar “livres de direção e controle”, e realizar um serviço que esteja “fora do curso normal dos negócios do empregador”. O processo judicial foi movido pelo Procurador-geral do estado, que o fez para impor o cumprimento da nova lei contra as empresas de tecnologia. O juiz afirmou que o argumento das empresas de que elas se limitam a conectar os motoristas com os clientes “contraria a realidade econômica e o bom senso”.

Depois de defender enfaticamente a correção e justiça da decisão californiana, o editorial do FT vai ainda mais além, ao opinar que as novas empresas de tecnologia devem se adaptar às normas de proteção ao trabalhador do Welfare State. Aliás, diz algo evidente, que deveria ser caro a todo verdadeiro liberal – são as grandes corporações que devem se sujeitar ao estado democrático de direito e não o inverso:

“As empresas argumentam que serem forçadas a pagar o salário mínimo e o auxílio-doença devastaria seus negócios em um momento em que as fontes de emprego, mesmo as precárias, são desesperadamente necessárias. Este argumento é pernicioso. As proteções dos trabalhadores são mais necessárias quando as pessoas estão desesperadas; se a alternativa é a pobreza, muitos podem estar muito dispostos a renunciar aos seus direitos. O Coronavírus, também, apenas tornou isto mais urgente. O pagamento por doença é essencial não apenas para proteger a própria saúde dos trabalhadores, mas também a de seus colegas e clientes; se os motoristas continuarem a trabalhar apesar de terem sintomas, isso pode ajudar a espalhar a doença.

Trabalhadores autônomos e trabalhadores da gig economy têm muitas vezes caído nas brechas nas tentativas dos países de proteger a renda durante a pandemia, incluindo aqueles que trabalham literalmente de bicos nas indústrias criativas. Fechar as brechas legais é um meio de garantir a proteção de que eles necessitam. A longo prazo, a solução é tornar os estados de bem-estar e a regulamentação mais apropriados para o local de trabalho moderno. Isso significa mais benefícios portáteis e garantir que os trabalhadores sejam tratados igualmente à medida que se deslocam entre diferentes empregos; vale a pena aprender com o modelo nórdico de “flexigurança”.

Os aplicativos de transporte estão enfrentando pressões em múltiplas jurisdições para reconhecer que seus trabalhadores são mais do que prestadores de serviços; um caso semelhante está sendo apreciado atualmente pelo Suprema Corte do Reino Unido. Em vez de continuar insistindo em sua própria interpretação dos fatos e da lei, é hora de Uber e Lyft serem verdadeiramente inovadores – e encontrarem uma maneira de operar enquanto dão a seus profissionais os direitos que lhes são devidos.”

Que belíssimo editorial esse, que entrará, como material didático, para os livros de história do Século XXI. Todos devem lê-lo, especialmente aqueles que preferem aplicar o Direito do Trabalho com argumentos metajurídicos baseados em teorias ideológicas friedmanianas desbotadas dos anos 1970, apenas em voga nas cartilhas do Instituto Mises e nos círculos de economistas ypiranguianos do bolsonarismo.

O editorial do Financial Times vem em boa hora, mas não causa nenhum espanto a quem compreende o verdadeiro sentido do liberalismo no estado democrático de direito, assim definido pelo antigo presidente da Suprema Corte dos EUA, Charles Evans Hughes, em julgamento sobre responsabilidade civil do empregador por acidente de trabalho: “liberdade significa a inexistência de restrições arbitrárias, e não uma imunidade contra regulamentações razoáveis e proibições impostas em prol da comunidade” (Chicago, Burlington & Quincy Railroad Co. v. McGuire, 219 U.S. 549 (1911)).

CÁSSIO CASAGRANDE – Doutor em Ciência Política, Professor de Direito Constitucional da graduação e mestrado (PPGDC) da Universidade Federal Fluminense – UFF. Procurador do Ministério Público do Trabalho no Rio de Janeiro.

Fonte: Jota